Publicamos abaixo trechos
do ótimo texto de Alex Antunes, blogueiro do portal Yahoo, que apresenta um
ponto de vista interessante sobre a repercussão causada pelo juiz federal do RJ
que, numa ‘canetada’, quis rebaixar os cultos afro-brasileiros. Não conseguiu,
mas está gerando boas discussões!
***
Há uma guerra religiosa
acontecendo no Brasil. Não é exagero, é uma guerra mesmo. E aconteceu nestes
dias uma das suas batalhas mais bizarras: a primeira instância da Justiça
Federal no Rio de Janeiro sentenciou que os “cultos afro-brasileiros não
constituem religião” porque suas “manifestações religiosas não contêm traços
necessários de uma religião”.
O MPF já recorreu, e é
impossível que a decisão não seja revertida, por ser inconstitucional. Mas
a sentença desse juiz é exemplar. Exemplar não no sentido de correta, mas de
expor o centro, o coração da discussão, ao mencionar “deus único”, escritos
religiosos e hierarquia constituída como “requisitos”.
Na verdade, se voltarmos à
espiritualidade ancestral, veremos exatamente o contrário, ou quase. Mesmo onde
há hierarquia (local) empossada em algum tipo de xamã, sacerdote ou pajé, ele
é apenas um emissário ou facilitador entre o sagrado e a experiência espiritual
individual, e não o representante de algum monopólio
metafísico-negocial, proprietário e gestor da distribuição do produto invisível
que é a palavra divina. Os sistemas politeístas, ou que lidam com panteões de
entidades intermediárias, como no caso os Orixás da tradição africana, são uma
descrição mais útil, sutil, variada e interessante da diversidade dos
comportamentos humanos.
E, em geral, menos
perigosos politicamente do que os sistemas onde há uma “moral única” que emana
de uma fonte divina exterior à experiência dos indivíduos – moral que em
geral serve para legitimar os interesses e preconceitos de seus “intérpretes”
oficiais, sua hierarquia constituída.
Ao contrário, as religiões
que se baseiam na transmissão oral da tradição são temperadas pela experiência
viva, justa, dinâmica e amorosa. O griô da tradição africana é um
sábio-andarilho, um sábio-da-rua, da vila, um misto de poeta, músico, árbitro e
depositário e intérprete da tradição, não um leitor de gabinete, um bedel da
palavra, um burocrata do espírito (como se isso não fosse um paradoxo e um
impasse).
Essas tradições também
costumam ter uma visão mais equilibrada da relação do homem com a natureza, já
que o mundo não é um “brinquedo” que Deus deu aos seus filhos para usarmos até
gastar ou quebrar. Mas um campo de experiências éticas e estéticas no limiar do
visível e do invisível, da natureza e do idealizado, do feminino e do
masculino. Um mundo horizontal, e não vertical, como essas alucinações
brancas monoteístas e repressivas pretendem.
É por isso que não me
espanta um “juiz”, na pior tradição branca, falar em livro, hierarquia e Deus
únicos. Esse juiz representa o invasor, o capitão do mato, o neto do dono da
capitania hereditária. Eu gosto de dizer que os brancos invadiram a terra
dos índios e a encheram de pretos, e agora reclamam que o resultado não está
suficientemente branco.
Não está, e não é pra
estar, e jamais vai estar. A guerra religiosa não se dá “no” Brasil. Ela se dá
contra o Brasil, pois o Brasil só existe como esse laboratório onde as tradições
se equivalem e se misturam – e não num delírio nazi de pureza e limpeza
européias.
O título “O Brasil é
macumbeiro” é uma provocação. Mas quer contemplar três fatos:
- Primeiro, o de
que o país, mesmo quando era “a maior nação católica do mundo” (assim dizia a
Igreja até recentemente, até começar a perder a parada para os
neopentecostais), também já era a maior nação espírita e a maior nação de
religiões das tradições africanas.
- Segundo, de que o termo “macumbeiro”,
pejorativo, tem que ser hackeado e invertido, como o foram outros termos
pejorativos – a trinca punk, funk e junk é um bom exemplo.
- E terceiro, e o mais
irônico, é que a experiência neopentecostal é um macumbão dos bons, com rituais
simpáticos (feitiçariazinhas envolvendo líquidos, escritas, objetos energizados
etc), sessões de transe e possessão (como o “falar em línguas”), e todo um
jargão não-cristão consolidado, como o uso do termo e da idéia de “encostos”. Ou seja, um macumbão em
nome de quem o nega. Se essa pegadinha é Deus quem manda, esse Deus é meu
inimigo, e não meu Pai.
Fonte: Blog do Alex Antunes
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